Critica da peça Valsa nº6

Por Araylton Públio


Valeu à pena ir ao Teatro do CUCA neste último sábado, 05/09/09, para assistir à segunda apresentação de Valsa nº. 06, texto expressionista do imortal Nelson Rodrigues, com direção de Gugu dos Anjos, que se saiu muito bem em sua primeira encenação profissional. Falo isso porque ultimamente tenho saído das estréias em nossa cidade com a sensação de que estamos perdendo o bonde da história.

O texto, originalmente um monólogo, foi adaptado para a interpretação de três atrizes: Edilma Santana, Keu Costa e Elaine Mattos, que formam um conjunto bem afinado em cena, ainda que Elaine esteja com uma projeção vocal de menor volume (o que pode ser perfeitamente corrigido).

Keu demonstra um poder de concentração muito intenso, sem que isso a impeça (na maioria das vezes) de atuar em contracena; enquanto que Edilma usa e abusa da vivacidade tanto de movimentação quanto de elocução das suas falas: pequenos problemas de articulação, no entanto, apagam algumas sílabas. Mas o que me deixou mais feliz é que todas estão totalmentea entregues à cena e demonstram perfeito entendimento das falas de seus personagens.

As três revezam-se nos papéis de Sônia (a menina de 15 anos que relembra a própria morte, num pesadelo de imagens quebradas), da mãe (que teme constantemente pela sanidade mental da filha) e do Dr. Junqueira (o velho médico da família, que se apaixona por Sônia e acaba assassinando-a com um punhal, pelas costas).

Tais mudanças, nas quais Sônia deixa de ser ela mesma para representar os outros, são feitas de forma sutil e eficiente, apenas por uma leve alteração da entonação vocal e de uma marca postural específica para os personagens coadjuvantes (no caso do Dr. Junqueira, a projeção da barriga e no da mãe, as mãos entrelaçadas), sem confundir a platéia em momento algum.

Mais outras são as opções felizes da encenação, resultantes de um processo laborioso de adaptação, inclusive tendo a participação de Celly Rodrigues na consultoria de interpretação das atrizes. Dentro do cenário, as três coroas de flores no plano alto, e, no plano baixo, a presença de muitas velas brancas acesas, ao lado de pétalas de papel vermelho, dão o tom exato de suspense lúgubre do texto, em que o assassinato de Sônia vai sendo aos poucos revelado. Apenas as faixas de tnt vermelhas presas à rotunda seriam dispensáveis, eu acho.

Completando o cenário, um banquinho de madeira, um arranjo com velas de sete dias, e três imitações de banquetas forradas por cetim branco (o mesmo tecido usado no figurino), onde as protagonistas tocam um piano invisível. Ou seja, uma cenografia bem limpa, equilibrada, valorizando ao máximo o trabalho de interpretação do elenco.

Bem diferente das últimas montagens adultas feirenses, em que um dos maiores pecados é justamente o uso de cenários realistas pesados, que tomam todo o palco e acabam por poluir o ambiente dramático, além de se distanciarem muito das idéias contemporâneas de encenação.

Outro aspecto que difere a direção de Gugu dos Anjos da de outras atuais é o uso da luz. Mesmo que em certos momentos seja utilizada a geral branca a 100% (o que causa nítido incômodo à platéia, quebrando o clima de delírio – talvez até uma opção do encenador...), há muitos achados felizes, poéticos, na utilização tanto de penumbras quanto de focos azuis, amarelos e vermelhos.

Nesses momentos, o espetáculo ganha em intensidade dramática e a atenção dos espectadores é garantida. É claro que os efeitos poderiam ser ainda melhores, não fosse a precariedade do sistema de iluminação do Teatro do CUCA, onde, inclusive, não se disponibiliza a presença de um técnico de luz.

Outro destaque é a trilha sonora que, sempre com a presença fundamental do piano, foi estruturada de forma correta, realçando a evolução do conflito, ao criar climas que vão do lírico ao trágico. Gosto de relembrar as cenas em que as três atrizes, sentadas nas banquetas, acompanham o som do piano com as mãos teclando no ar.

Em suma, mesmo que o texto não seja dos de mais fácil compreensão para uma platéia menos habituada ao estilo expressionista, e ao próprio Nelson, a direção do espetáculo esmera-se em ajudar no entendimento das idas e voltas no tempo, feitas pela memória delirante da falecida Sônia, de maneira criativa e, muitas vezes, ousada. Sinal de que Gugu está atento e aberto às conquistas do nosso teatro contemporâneo, exemplo que mereceria ser seguido por muitos de nós.

E no final, uma imagem marcante: ao dar as costas para a platéia, saindo de cena, as intérpretes de Sônia deixam ver que seus vestidos, alvíssimos desde o início, estão agora manchados pela cor do sangue, efeito também obtido com ousadia e criatividade. E não há dúvidas de que essas duas características estão muito presentes durante os intensos quarenta minutos dessa moderna adaptação de Valsa nº. 06.

Araylton Públio é mestre em Literatura e Diversidade Cultural pela Uefs e pesquisador da poesia popular
E-mail: aapublio@ig.com.br

Critica da peça Valsa nº6

Por Araylton Públio


Valeu à pena ir ao Teatro do CUCA neste último sábado, 05/09/09, para assistir à segunda apresentação de Valsa nº. 06, texto expressionista do imortal Nelson Rodrigues, com direção de Gugu dos Anjos, que se saiu muito bem em sua primeira encenação profissional. Falo isso porque ultimamente tenho saído das estréias em nossa cidade com a sensação de que estamos perdendo o bonde da história.

O texto, originalmente um monólogo, foi adaptado para a interpretação de três atrizes: Edilma Santana, Keu Costa e Elaine Mattos, que formam um conjunto bem afinado em cena, ainda que Elaine esteja com uma projeção vocal de menor volume (o que pode ser perfeitamente corrigido).

Keu demonstra um poder de concentração muito intenso, sem que isso a impeça (na maioria das vezes) de atuar em contracena; enquanto que Edilma usa e abusa da vivacidade tanto de movimentação quanto de elocução das suas falas: pequenos problemas de articulação, no entanto, apagam algumas sílabas. Mas o que me deixou mais feliz é que todas estão totalmentea entregues à cena e demonstram perfeito entendimento das falas de seus personagens.

As três revezam-se nos papéis de Sônia (a menina de 15 anos que relembra a própria morte, num pesadelo de imagens quebradas), da mãe (que teme constantemente pela sanidade mental da filha) e do Dr. Junqueira (o velho médico da família, que se apaixona por Sônia e acaba assassinando-a com um punhal, pelas costas).

Tais mudanças, nas quais Sônia deixa de ser ela mesma para representar os outros, são feitas de forma sutil e eficiente, apenas por uma leve alteração da entonação vocal e de uma marca postural específica para os personagens coadjuvantes (no caso do Dr. Junqueira, a projeção da barriga e no da mãe, as mãos entrelaçadas), sem confundir a platéia em momento algum.

Mais outras são as opções felizes da encenação, resultantes de um processo laborioso de adaptação, inclusive tendo a participação de Celly Rodrigues na consultoria de interpretação das atrizes. Dentro do cenário, as três coroas de flores no plano alto, e, no plano baixo, a presença de muitas velas brancas acesas, ao lado de pétalas de papel vermelho, dão o tom exato de suspense lúgubre do texto, em que o assassinato de Sônia vai sendo aos poucos revelado. Apenas as faixas de tnt vermelhas presas à rotunda seriam dispensáveis, eu acho.

Completando o cenário, um banquinho de madeira, um arranjo com velas de sete dias, e três imitações de banquetas forradas por cetim branco (o mesmo tecido usado no figurino), onde as protagonistas tocam um piano invisível. Ou seja, uma cenografia bem limpa, equilibrada, valorizando ao máximo o trabalho de interpretação do elenco.

Bem diferente das últimas montagens adultas feirenses, em que um dos maiores pecados é justamente o uso de cenários realistas pesados, que tomam todo o palco e acabam por poluir o ambiente dramático, além de se distanciarem muito das idéias contemporâneas de encenação.

Outro aspecto que difere a direção de Gugu dos Anjos da de outras atuais é o uso da luz. Mesmo que em certos momentos seja utilizada a geral branca a 100% (o que causa nítido incômodo à platéia, quebrando o clima de delírio – talvez até uma opção do encenador...), há muitos achados felizes, poéticos, na utilização tanto de penumbras quanto de focos azuis, amarelos e vermelhos.

Nesses momentos, o espetáculo ganha em intensidade dramática e a atenção dos espectadores é garantida. É claro que os efeitos poderiam ser ainda melhores, não fosse a precariedade do sistema de iluminação do Teatro do CUCA, onde, inclusive, não se disponibiliza a presença de um técnico de luz.

Outro destaque é a trilha sonora que, sempre com a presença fundamental do piano, foi estruturada de forma correta, realçando a evolução do conflito, ao criar climas que vão do lírico ao trágico. Gosto de relembrar as cenas em que as três atrizes, sentadas nas banquetas, acompanham o som do piano com as mãos teclando no ar.

Em suma, mesmo que o texto não seja dos de mais fácil compreensão para uma platéia menos habituada ao estilo expressionista, e ao próprio Nelson, a direção do espetáculo esmera-se em ajudar no entendimento das idas e voltas no tempo, feitas pela memória delirante da falecida Sônia, de maneira criativa e, muitas vezes, ousada. Sinal de que Gugu está atento e aberto às conquistas do nosso teatro contemporâneo, exemplo que mereceria ser seguido por muitos de nós.

E no final, uma imagem marcante: ao dar as costas para a platéia, saindo de cena, as intérpretes de Sônia deixam ver que seus vestidos, alvíssimos desde o início, estão agora manchados pela cor do sangue, efeito também obtido com ousadia e criatividade. E não há dúvidas de que essas duas características estão muito presentes durante os intensos quarenta minutos dessa moderna adaptação de Valsa nº. 06.

Araylton Públio é mestre em Literatura e Diversidade Cultural pela Uefs e pesquisador da poesia popular
E-mail: aapublio@ig.com.br